CARLOS CORREIA SANTOS
A poesia de Carlos Correia foi ovacionada no Projeto Amapaense: POETAS DA AMAZÔNIA, com a participação musical de Nilson Chaves e Osmar Junior.
Carlos Correia Santos é paraense, natural de Belém. Bacharel em Direito, jornalista e produtor cultural, Amante da literatura, é o idealizador, coordenador e apresentador de vários projetos de incentivo à leitura na região amazônica, entre os quais se destacam: "Café com Verso e Prosa" (realizado em Belém), "Café com Leituras" (realizado no município paraense de Castanhal) e Estrada de Letras (realizado nos municípios paraenses de Paragominas, Marabá, e Santarém), e em Macapá, capital do Amapá). Preside a ONG literária Cia. Amazônica do Livro tem trabalhos publicados e ganhou vários prêmios regionais.
Toda saudade é vil e vã
Carlos Correia Santos
No abrir-se da porta, aquela imagem quase monocromática. Um longilíneo vestido preto, trajando a palidez de uma flor-frágil. Toda a tradução da delicadeza cabível em uma dama.
O carteiro, retido à soleira, teve de deter o impulso de parecer idiota. Fora simplesmente tomado de assalto pela beleza triste a sua frente.
A jovem mulher falou mais com os olhos do que com os lábios. E disse apenas:
— Sim?...
Não... Por alguns segundos, o carteiro esqueceu-se do que havia decorado para falar:
— Bom dia, senhora. Sou do serviço de posta restante, dos correios — os olhos nos olhos vagos da outra — Tivemos um problema de extravio com uma correspondência endereçada a esta residência. Só conseguimos detectar o erro há pouco tempo. Na verdade, depois de um ano. E, por se tratar de um lapso tão grave, designaram-me para entregar pessoalmente a carta... É que ela foi originalmente postada com a recomendação de urgência — os olhos nos olhos fugidios de sua interlocutora — Aqui está...
E um envelope amarelado dirigiu-se à mulher vestida de preto.
Não foram mãos que tomaram para si a carta, mas puro vento. O olhar da dama-flor-frágil recaiu no sobrescrito e seu corpo inteiro estremeceu, quase a fazendo cair.
A agilidade do carteiro, que rápido se adiantou para ampará-la, impediu uma queda.
— Leve-me para dentro — foi o pedido que ela fez como quem pede as últimas coisas da vida.
O carteiro teve de carregá-la. Um feminino hálito quente dedilhando seu queixo, enquanto invadia aquela estranha casa escura, levando nos braços uma dama delgada e frágil. E tudo o levou a uma sala onde nada mais havia que uma cadeira de balanço e um pequeno banco, postos um em frente ao outro.
Acomodou a anfitriã na primeira e tomou a liberdade de se instalar no segundo.
Desfeita em seu assento, parecendo respirar só o suficiente para ainda existir, a mulher murmurou:
— Esta carta é de meu marido.
O carteiro não teve tempo de falar nada. A outra continuou a sussurrar, encarando o pobre empregado dos correios como se lhe tivesse ódio:
— Eu o enterrei ontem, você entende? Ele morreu e eu o enterrei ontem.
— Santo Deus... — um engolir em seco — Sinto muito. Acredite: sinto muito mesmo.
Ela estendeu a correspondência de volta ao carteiro.
— Tome. Abra e leia para mim.
"O que?!" Exatamente assim o outro exclamou:
— O que?
O retorno veio entre dentes, num tom explicitamente imperativo:
— Abra e leia para mim.
Não foram mãos que reouveram a correspondência, mas puro tremor. O carteiro hesitou em abrir aquele envelope amarelado. A ordem, porém, ainda lhe ecoava nos ouvidos. Destruiu, por fim, o lacre, retirou um papel dobrado em quatro. Desdobrou-o devagar. Houve cheiro de sândalo em volta.
— Leia... — ciciou a viúva. Um tom surpreendentemente lascivo. Ela sabia perfeitamente o que estava para ser lido.
E o carteiro iniciou uma leitura lenta:
— Minha amada flor-frágil... Continuo de onde parei na última carta. Continuo daquele ponto estranho e tão querido: meus desejos. Eu escreveria todas as cartas do tempo para discorrer sobre o desejo que escorre por mim...
O carteiro parou de repente. Fez ar de quem achava aquilo tudo absurdo.
E a viúva, quase num arfar:
— Leia...
Ele prosseguiu:
— O desejo que escorre por mim feito suor. O que molha em mim este suor? Para onde escorrem essas gotas? Escorrerá por que reentrâncias minhas?... Tu sabes o que em mim se umedece. Tu sabes muito bem que suo por ti. Por causa dessa tua perturbadora e simples lembrança. De ti talhada nesse teu corpo. Tu sabes... Tu sabes que escrevo essa carta nu!
Um grunhido da viúva, um olhar quente do carteiro.
— Deitado na cama, o travesseiro por apoio, escrevo nu. Flamejado pela visão que guardo nas retinas. A visão da tua nudez — o olhar correu pelo vestido preto, a sua frente. Tecido denso sobre um busto que subia e descia numa respiração desmedida. Tecido que subia até o pescoço de sua dona e descia ventre abaixo, cobrindo tudo miseravelmente — Tudo da tua nudez eu conheço. Mas é como se eu não conhecesse nada, pois quero sempre admirá-la qual fosse pela primeira vez. Admirar o que só eu sei. Pois só de mim sabe o arrepio dos teus poros...
A viúva levou a mão ao pescoço. Parecia sufocada. Os dedos desceram pelo colo, fugiram pelos seios, caíram pelo ventre, indo embora...
— Só de mim sabem os teus seios, o teu ventre, as tuas virilhas...— Um mirar que ia da carta à viúva, num frenesi quente — Tenho saudade do teu mistério. Do mistério que só eu rocei. Mas toda saudade é vil e vã. Pois não posso passar a língua na saudade. Não posso saciar minhas carnes com a saudade. Porque a saudade não me traz gozo.
A viúva — uma lágrima resvalando pela face — ergueu-se de repente. Aproximou-se do carteiro, arrancou-lhe a carta das mãos e determinou:
— Quero que você mate a saudade que sente meu marido morto.
E num instante elétrico, ela se retirou avidamente do vestido preto que a prendia. Pôs-se nua. O carteiro, fremindo, também foi ágil em livrar-se de suas roupas. Assim, os dois se uniram. E o assoalho conheceu o peso e a ginga de seus corpos atados. Gemidos, fúria, desatino...
Após o sexo, ainda no chão, desfeitos um sobre o outro... o casal ria de satisfação. E coube a mulher confessar:
— Você foi perfeito dessa vez.
O homem, totalmente alquebrado, gostou de escutar aquilo:
— Fiz tudo direitinho?
A outra mordeu os lábios antes de responder:
— Mais do que direitinho. Você parecia um autêntico carteiro assustado — gargalhadas — E eu? Convenci como viúva?
— Nossa! Até me deu vontade de morrer de verdade. Esse teu vestido preto faz a gente sentir vontade de cometer suicídio.
— Pervertido!
— Eu, pervertido? A idéia de tudo isso foi tua!
Um ansioso beijo na boca. Sofreguidão unindo língua com língua
— Vamos embora — ordenou ela, regozijada com toda aquela loucura — os donos da casa podem chegar a qualquer momento!
O texto acima foi o vencedor do I Concurso Metropolitano de Literatura promovido pela Prefeitura Municipal de Belém, em 2003.